quarta-feira, fevereiro 18, 2004

O Aborto... outra vez!

Ontem à noite transmitiram na SIC Notícias um debate interessantíssimo sobre o aborto. Ou melhor, sobre a despenalização/descriminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez. IVG... um termo mais soft, menos agressivo e mais parecido com algo involuntário, como um AVC...

A favor da despenalização estavam a Dr.ª Ana Gomes (PS), a Dr.ª Ilda Figueiredo (PCP) e o Dr. Miguel Oliveira (médico).
Contra a despenalização estavam O Dr. José Paulo Carvalho (Presidente da Federação Portuguesa Pela Vida ), o Dr. João Paulo Malta (médico) e o Dr. Pedro Vaz Prado (Juiz).

Como é óbvio foi um debate e não se chegou a qualquer conclusão. Mas foi um debate interessante porque me permitiu ouvir os argumentos de ambos os lados, de ambas as posições. E permitiu-me, também, tirar ilações.
Tentando ser o mais objectiva e imparcial possível assisti ao debate e ouvi os argumentos esgrimidos de um lado e do outro da barreira. E fiquei profundamente surpreendida e desiludida com os argumentos que sustentam a despenalização.
Em primeiro lugar só se falou em MULHERES. As mulheres para aqui, as mulheres para ali... Mulheres, mulheres, mulheres.
As Dr.ªs Ana Gomes e Ilda Figueiredo estavam ali para defender as mulheres e fizeram disso um bandeira que abanavam sempre que não tinham argumentos. Frases como "Os homens não sabem o que é ser mulher!" foram muitas vezes repetidas, principalmente quando os argumentos lógicos faltavam.
A Dr.ª Ana Gomes passou a parte inicial do debate a atirar com estatísticas para cima da mesa. Depois, quando se chegou a uma discussão mais profunda sobre a vida propriamente dita, disparatou completamente. Mas foi um verdadeiro absurdo o que saiu da boca daquela mulher. Exemplos?
Bom, vamos à Lei. Que também se discutiu.
Referia o Dr. Pedro Vaz Prado que o artigo 66.º do Código Civil estabelece que "A personalidade (jurídica) adquire-se no momento do nascimento completo e com vida." (A Dr.ª Ilda Figueiredo citou esta diposição de cor...) e dizia, ainda , que uma coisa é a personalidade jurídica, outra, completamente diferente, é o direito a adquirir personalidade jurídica. Esse direito está consagrado na Constituição da República Portuguesa, pois "Toda a vida humana é inviolável".
Estavamos no plano da discussão jurídica, da discussão de princípios e valores fundamentais do Estado e do Direito. E a Dr.ª Ana Gomes, com toda a elevação e sentido de oportunidade, imediatamente respondeu "Essas questões podem ser muito interessantes, mas para a mulher que tem que tomar uma decisão...". Lá veio a bandeira da mulher... porque outros argumentos faltaram.
Outro exemplo:
Falava o Dr. José Paulo Carvalho sobre "a questão de fundo", o princípio constitucional de que toda a vida humana é inviolável. E contava que um partido político, com assento parlamentar, na próxima alteração da CRP, pretendia que esse preceito fosse alterado para "Toda a vida humana é inviolável, desde a concepção até à morte natural.". Ao que parece, o dr. Jorge Miranda terá dito que tal alteração é absolutamente desnecessária, pois é exactamente isso que está expresso na constituição naquele princípio de que "Toda a vida humana é inviolável". Mais uma vez o debate recaía sobre princípios fundamentais, sobre direito, e a Dr.ª Ana Gomes mais uma vez atirou para a mesa com um argumento brilhante e elevadíssimo: "A questão de fundo é vamos ao referendo, saber o que os portugueses querem!".
Mas não ficou por aqui. Infelizmente, e já vou dizer porquê...
Lá para o fim do debate perguntou-se aos médicos o porquê de um prazo, porquê até às 12 ou 10 semanas, porque não até às 13 ou 14.
E os médicos explicaram que de facto não há ali qualquer marco ou click. É um limite como qualquer outro e que não tem uma explicação científica. Falaram do sistema nervoso central do feto...
E a páginas tantas referia o Dr. João Paulo Malta que quando uma mulher lhe diz que quer fazer um aborto, que não quer ter aquela criança, lhe faz uma ecografia e lhe mostra o feto que traz no ventre. Lhe mostra a cabeça e os braços e as pernas. E o sistema nervoso central. E diz que o feto sente, porque "Se o pico, ele foge, o que é uma coisa extraordinária....". E aqui ouve-se a Dr.ª Ana Gomes na intervenção mais absurda da noite, a dizer "Olhe, e não lhe mostra um fotografia de uma criança vítima de uma bomba no Iraque?".
Brilhante.
Fantástico.
Único.
Um argumento excepcional e que deita por terra qualquer tentativa de ser contra o aborto.

Respeito as opiniões, aceito que se pretenda a liberalização do aborto. Aceito que se pretenda a realização de um referendo.
Não aceito que se discuta este tema nos termos em que ontem foi discutido. E que se apresentem argumentos como estes.
Quando falamos sobre o aborto e sobre a sua liberalização, estamos a comparar dois direitos fundamentais e a optar por um deles. De um lado temos o direito à dignidade da mulher, à sua livre escolha, do outro lado temos o direito à vida. E isto já é a minha opinião.

Se se quer defender a liberalização do aborto, não se pode considerar esta "balança", estes dois direitos. Tem que se negar à partida um deles, nomeadamente o direito à vida. Qual é o argumento? Conjugar o princípio fundamental expresso na Constituição com a Lei ordinária e defender textualmente o que está expresso no Código Civil, ou seja, o direito à vida humana é inviolável "a partir do nascimento completo e com vida". Assim, negando-se a vida intra-uterina, considerando-se, como dizia a Dr.ª Ilda Figueiredo, que o feto não é vida humana, não se cai na enorme contradição de princípios que é colocar o direito à escolha da mulher acima do direito à vida.
É este o argumento que tem que ser invocado e defendido por todos aqueles que são a favor da escolha da mulher e a favor da liberalização do aborto.
Só assim poderão defender a sua posição com coerência e discutir estas questões de uma forma elevada, lógica e sensata. Ainda que o argumento vá contra a ciência...

O argumento nunca pode ser "as mulheres". Não pode porque a escolha das mulheres não é um argumento. A escolha das mulheres é prévia à gravidez. Escolhem usar, ou não, meios contraceptivos.
Se não os usam, não tem qualquer direito a escolha: não consideram vida humana o embrião ou feto alojado no ventre e livram-se de qualquer consequência daquela escolha prévia, ou então consideram vida humana aquele embrião ou feto e nesse caso não tem o direito de a eliminar, porque estão a colocar na balança aqueles dois princípios fundamentais. E o direito à vida é o princípio basilar de toda e qualquer construção jurídica, política ou religiosa de um Estado.

A minha opinião?
Bom, eu concordo plenamente com a Lei que se encontra em vigor. Admito o aborto nos casos previstos na Lei, sou contra a liberalização. Acho que seria encarado com mais um meio contraceptivo, como o é noutros Países.
Sim, acredito na vida a partir do momento da concepção. Sim, acredito na vida intra-uterina. E sim, acredito que deve ser defendida.
Claro que estou numa posição muito favorável. Eu já tenho uma filhota e quando estava grávida fiz ecografias. E às doze semanas vi a Beatriz a mexer-se, a esticar e encolher os braços, a virar-se ao contrário. Vi, de facto, uma criança, um bebé muito pequenino - tinha 5,6 cms na altura - a revelar VIDA.
Admito que haja quem entenda que aquilo não é vida humana. Mas para mim é vida humana, e aquela que mais precisa de protecção. A mais indefesa forma de vida humana.
E agora pensemos. Com lógica.
Os partidos de esquerda na história da humandidade sempre foram os que mais se preocuparam com os direitos dos mais indefesos.
Defenderam os trabalhadores contra os patrões porque estavam numa posilção indefesa: precisavam de trabalhar e de ganhar dinheiro, e por isso mesmo podiam ser explorados.
Defenderam as mulheres dos maridos, lutando pelo direito ao divórcio.
Saúde pública, aberta a todos, ricos ou pobres, pretos ou brancos, homens ou mulheres. Porque os doentes são indefesos. Principalmente os mais pobres.
Ensino público, aberto a todos, ricos ou pobres, pretos ou brancos, homens ou mulheres. Porque o ensino nos abre as portas do futuro, principalmente aos mais pobres.
Justiça para todos, ricos ou pobres, pretos ou brancos, homens ou mulheres. Porque a justiça visa exactamente defender os mais necessitados.

E agora, de repente, recusam direitos ao ser mais indefeso. Aquele que não se pode mesmo defender, nem berrar, nem chorar, nem fugir, nem escolher. Nem manifestar nas ruas com cartazes.
E recusam-nos com base na escolha livre da mulher-mãe.
De repente defende-se uma cultura de desresponsabilização da mulher. Defende-se que a mulher, se assim o entender, não deve assumir responsabilidade pelos seus actos. Pode livremente eliminar a consequência dos seus actos. E essa consequência é a VIDA.
Não sei porque é que me vem sempre à memória o tema da escravatura... Do direito que os propietários dos escravos tinham sobre os mesmos. Mas há aqui qualquer paralelismo...
Ainda que longínquo e de difícil explicação.
Um feto não vive sozinho, e os escravos viviam.
Mas há um livre arbítrio, uma possibilidade de decisão sobre a vida que me faz equiparar estas duas situações.
Tenho que pensar mais sobre isto...
E o texto já vai longo demais.